O medo

O medo existe em nós desde que existe Humanidade. Faz parte do nosso instinto de sobrevivência, o que nos protegia a vida nos tempos recônditos, nos mantinha em grupos e nos fazia esconder em cavernas, apagar fogos para não chamar a atenção de outros animais.

Está nos nossos genes. E à medida que vamos crescendo e conhecendo-nos melhor, apercebemo-nos dele a chegar como forma de sensação desconfortável, dúvida, ansiedade, até ataque de pânico.

Já tive destes momentos algumas vezes na vida. Lembro-me perfeitamente da sensação de medo, puro medo, quando entrei num táxi que um cliente me chamou em Santiago do Chile, e me apercebi que tinha buracos no chão, o motorista tinha um olhar vidrado e começou a meter-se por umas ruas muito secundárias. Acabei a trocar mensagens com Portugal, a partilhar a minha localização, ligada ao Goople Maps, a confirmar o percurso, que se deu rapidamente e sem problemas. E no fim até foi mais barato (não fosse o custo do roaming) que o carro que me tinha levado antes. Mas a sensação de desconforto e perigo ficou.

O medo ligado à proteção da integridade física é conhecido pelas mulheres. O estacionar em locais com luz, andar com as chaves no meio dos dedos, tentar caminhar o menos tempo possível à noite sozinhas, correr sem auscultadores nos ouvidos em locais pouco movimentados.

Mas há outro tipo de receio que nos acompanha e que nos é promovido por outras entidades para mexer com as nossas decisões. Desde o nosso trabalho, à política, aos seguros, até a escola que escolhemos para os nossos filhos, somos altamente influenciados por mensagens que mexem com os nossos medos interiores mais básicos – o nosso futuro, a nossa velhice, a nossa saúde, a nossa liberdade, a nossa família, o nosso dinheiro.

Qualquer um deles consegue ser ultrapassado, ou transformar-se em escolha consciente, com um aumento da informação e autoconhecimento. Perceber o que dentro de nós nos leva a bloquear ou a tomar determinada decisão. E estudar acerca dela, compreender se no limite vai para além dos nossos valores mais profundos e, como tal, avançar com a coragem de não seguir o que nos amedronta, nos agarra a um caminho que, em circunstâncias livres, sem medos, nunca seguiríamos.

Há uns tempos tive essa sensação de medo, que me tolhia a decisão. Tive de me afastar para analisar exatamente o que me assustava num futuro que não fosse o que o medo protegia. Ajudou ter ao meu lado quem me fez ver que usar esse sentimento para me preparar melhor seria a escolha inteligente. Perceber os pontos fracos e verificar se seria possível ultrapassá-los. Fazer contas, analisar custos, pensar o que para mim valia mais. E então decidir em consciência.

Verbalizar, escrever, desenhar, aceitar o que nos assusta é um processo difícil porque temos de assumir as nossas fragilidades. Mas trabalhar o que não gostamos de ver, estudar o que pode correr mal, planear mais do que um caminho, será sempre mais enriquecedor do que deixar o medo prender-nos a situações que vão contra o que acreditamos, o que desejamos e onde nunca ficaríamos se fossemos totalmente livres para sermos quem somos como indivíduos.

É verdade que essa liberdade total é utópica, mas tentar chegar a ela, passo a passo, dia a dia, naquilo que ainda conseguimos controlar, é a maior vitória contra os outros medos que ainda habitam em todos nós.

Publicado a 24 Junho 2021

Partilhar Artigo

Parceiros Premium
Parceiros