Dos acasos

Ao longo da História, existem momentos marcantes que mudaram o rumo e a vida de gerações para sempre. No entanto, alguns desses momentos dependeram de fatores terceiros, acasos, que se não tivessem acontecido ou provocado essa mudança, provavelmente iriam atrasar anos ou décadas a sua ocorrência.

Lembro-me, assim logo à primeira, do movimento sufragista de Inglaterra. Desde o final do século XIX que as mulheres lutavam pelo direito ao voto. Greves de fome, incêndios provocados, manifestações. Nada as conseguiu fazer valer o seu objetivo. Na verdade, as mulheres ganharam o direito ao voto no Reino Unido em 1918, logo a seguir à Primeira Guerra Mundial. E foi porque se tornaram uma parte ativa e necessária para a sociedade, trabalhando, produzindo e ocupando os lugares vagos que os homens que morreram na Guerra deixaram. Só assim, é um facto, é que o direito ao voto começou na Europa, partindo das terras britânicas e estendendo-se até Portugal, onde aí teve a aprovação legal em 1931 (ainda que com algumas restrições).

Há outra história, bastante curiosa, que é também um exemplo de como uma invenção pode resolver um problema grave, sem ter sido, à partida, desenhada para tal.

No início do século XX, Nova Iorque era já uma das cidades mais populosas do mundo. Estima-se que lá vivessem 3 milhões de pessoas. Pessoas essas que se deslocavam nos 200 mil cavalos que circulavam na cidade, puxando charretes, transportando mercadorias, enfim, sendo usados como força motriz. Se tivermos em conta que cada animal destes produzia 10 a 15 kg de fezes diárias… estamos perante um gravíssimo problema ambiental. Aliás, esta é uma das razões porque os edifícios em Nova Iorque possuem uma escadaria na saída da porta principal para prevenir a passagem direta para uma rua suja e cheia de resíduos dos animais. A dada altura, foi criada uma comissão na cidade para estudar uma solução para um problema que se avizinhava dramático para as décadas do início do século XX. No entanto, as soluções eram poucas e reduziram-se a uma melhor definição da estrada e dos passeios, os transportes públicos foram encorajados e foi-se gerindo o que se podia.

Até que surgiu o automóvel. Por volta de 1910, Henry Ford apresentou o seu modelo T a um valor possível de ser comprado por uma grande franja da sociedade e isso levou à retirada de muitos destes animais.

Atualmente, tenho vindo a assistir a mudanças bem drásticas na forma como se encara o trabalho. Discute-se o teletrabalho, as semanas de 4 dias, a motivação e satisfação dos trabalhadores, a sua saúde mental, criaram-se funções como os Chief Happiness Officer. Eu acredito que grande parte destas mudanças vêm de toda uma nova geração que embarcou recentemente no mercado do trabalho. São os filhos das redes sociais, da crise financeira e, mais recentemente, da pandemia. Sabem que nada é garantido, que tudo é mais rápido e que podem fazer a diferença como seres individuais. Querem aproveitar a vida, mas fazer uma carreira é também importante para eles. Têm menos receio de falar e exprimir o que precisam.

Viram os pais, ou os pais de amigos, perderem os empregos depois de anos de dedicação, assistiram à paragem total de um mundo doente, muitos diminuíram o poder de compra face ao que a geração anterior tinha. Sabem, aliás, que a vida vai ser mais exigente e desafiante. Todos os dias lhes repetem isso.

Como acreditam que terão uma vida de instabilidade financeira e mobilidade geográfica, não receiam a mudança. Mas não prescindem daquilo que lhes é importante. Querem férias, querem sair a horas, querem trabalhar de casa. Querem as experiências, as viagens, os lugares que visitam pelo ecrã do telemóvel.

Querem tempo, o bem mais precioso.

Obrigaram a mudar a forma como se contrata, o que se oferece, como se gere a progressão nas empresas.

E, muito mais importante do que tudo, estes jovens poderão modificar o modo como vemos o trabalho. Estão a ensinar, em pouquíssimos anos, toda uma sociedade mundial, que é possível o equilíbrio entre a carreira e a vida privada.

Por acaso. Ou talvez não?

Nota: desculpem estragar-vos a imagem romântica dos filmes que se passam em Nova Iorque. Nunca mais vi as escadarias tão icónicas dos bairros nova-iorquinos da mesma maneira depois de saber da história que aqui vos conto…

 

Inês Brandão é fundadora e Global Business Manager da Frenpolymer. Leia mais artigos da autora aqui

Publicado a 26 Janeiro 2023

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