Caminho de Santiago

Planeámos o nosso Caminho de Santiago pela Rota Portuguesa Interior, a partir de Valença. Esperavam-nos 120 km para fazer em 6 dias. Eu ia sem grandes expectativas ou objetivos. Queria usufruir do caminho, ver se seria capaz, com o foco em duas pessoas.

Falávamos já em fazer este percurso há bastante tempo. Eu e o meu marido. Primeiro, pensámos em ir com os miúdos, mas eles rapidamente nos torceram o nariz. Então, aproveitámos estes dias que estaríamos sem eles e fomos. Julho é um mês quente, sabíamos que o calor seria uma desvantagem, mas isso foi considerado e decidimos que poderíamos levantar-nos cedo. Tivemos sorte: os dois primeiros dias foram complicados, mas não impossíveis. E depois, para o fim da semana, até chuva miudinha apanhámos.

Decidimos fazer a “versão férias” do Caminho, como eu lhe chamei. Marcámos lugares para dormir bonitos, comemos bem, bebemos melhor. Tirar o maior prazer de um esforço que, talvez por isso, nem foi tanto esforço assim. À medida que a semana avançava, as dores iam diminuindo. Até a dor no meu pé esquerdo que me assustava um pouco no primeiro dia desapareceu até Santiago. Quando me sentia a desanimar, focava-me nas pessoas que me acompanhavam no meu coração e ganhei forças nas suas coragens – tenho amigos e familiares inspiradores e eram eles que me enviavam as suas energias com os seus exemplos de resistência.

Li muitos blogues e textos sobre este Caminho e as suas etapas. Falei com uma amiga que o tinha feito recentemente, deu-me dicas ótimas e lembrou-me de coisas tão básicas como a credencial do peregrino, que se tem de carimbar pelo menos duas vezes ao dia. Mas, até isso deixou de ser importante, apesar de o fazermos para conseguirmos a “Compostela”, que atesta os quilómetros que fizemos. Deixou de ser importante, porque o que contava era o que estava em nós, nos nossos pés, na nossa cabeça, nas nossas conversas, nos nossos silêncios, nos nossos encontros e entreajudas com outros caminhantes. Ter um papel era secundário, o que contava tinha ficado em nós e dificilmente seria passado por escrito.

 

É essa a grande lição que se tira do Caminho. Durante o percurso, tudo me parecia ser mais um passeio, uma atividade física, por estradas e bosques, aldeias bonitas e cuidadas. Pelo menos para mim. Só agora, que o fiz já há uns dias, é que avalio o impacto que teve na minha vida. Sei que há pessoas que têm clarividências, emoções fortes na sua caminhada. Eu não senti isso. Usufruí das horas a andar, dos momentos calados que eu e o meu marido passávamos, sem a obrigação de os quebrar. Da troca de palavras com outros peregrinos, que vinham do Uruguai, do México, dos EUA, de tantos países da Europa.

Ao aproximar-me do final do Caminho, a meio da subida de 10 kms que nos separava da Catedral de Santiago, comecei uma autoanálise ao Caminho: mas então eu não tive nenhuma epifania, nada tinha mudado nos meus objetivos de vida, nenhuma preocupação de maior tinha sido ultrapassada, talvez nem avaliada. Mas eu também não me tinha posto a Caminho com nenhuma expectativa em particular, certo? Mesmo assim, talvez no meu inconsciente, eu esperasse algumas respostas.

Na curva seguinte, que cruzava a autoestrada por baixo, vemos uma senhora jovem a empurrar uma cadeira de rodas. Tentei acelerar o passo, para ajudar, mas os 115km nas pernas, 20 já nessa manhã, não me deixavam andar mais depressa. Lá conseguimos aproximar-nos e vi que era uma menina que ia sentada. Não teria mais de 12 anos. Falámos com a mãe, vinham de Pontevedra, 60 kms de Caminho feito. Perguntei se faziam o caminho pela estrada e ela disse que não, fizeram tudo igual a nós. Confesso que fiquei em choque: existiam partes bem difíceis de ultrapassar, com pedregulhos irregulares, pontes de pedra extremamente finas. Explicou-me como se movimentavam nessas situações e sim, seria possível. Com imaginação, força e bom humor, talvez. Mas a ajuda apenas era dada nas partes complicadas, a cadeira (que não era elétrica) era manuseada pela menina quase sempre.

“Como te chamas?”

“Soy Victória!”

“Claro que sim, que tinhas de te chamar Victória!”, e rimo-nos as duas.

Despedimo-nos mais à frente e continuamos os dois, eu francamente emocionada com este encontro.

Quase no fim de um Caminho, a 5 kms do ponto final, a Victória surgiu-me para me relembrar que há uma força motriz mais poderosa que o vapor, a eletricidade e a energia atómica: a Força de Vontade.

Aterrámos no chão em frente à Catedral de Santiago e tirámos a fotografia da praxe.

Num misto de alegria por termos conseguido e uma ligeira pena por ter acabado.

Mas é como diz o peregrino: “Saímos do Caminho, mas o Caminho nunca sai de nós”.

E com ele, ficará também em mim, a Victória.

 

Inês Brandão é fundadora e Global Business Manager da Frenpolymer. Leia mais artigos de Inês Brandão.

Publicado a 13 Julho 2023

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