Pode uma notícia dizer mais sobre quem a escreve (ou publica) do que sobre a pessoa sobre quem se escreve? Os milhares de internautas que se têm insurgido nas redes sociais contra o recente artigo da revista Veja dedicado àquela que pode vir a tornar-se a próxima primeira-dama do Brasil parecem acreditar que sim.
Descrita pela publicação brasileira como uma mulher que “aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o ‘vice’”, não é propriamente Marcela Temer a estar na mira da chuva de posts, fotografias e memes que inundou o Facebook, o Twitter e o Instragram nas últimas horas. Satirizando o título “bela, recatada e do ‘lar’” que encabeça o artigo, o protesto, que se tornou mesmo um dos temas mais comentados no Twitter, dirige-se sobretudo à peça que muitos defendem veicular uma conceção machista e misógina do papel da mulher na sociedade.
“A intenção é enaltecer Marcela Temer como a mulher que todas deveriam ser, à sombra, nunca à frente”, condenou Djamila Ribeiro.
A atriz Tainá Müller, que se juntou à contestação de mulheres e homens anónimos e famosos um pouco por todo o Brasil, resumiu na legenda da fotografia que colocou a respeito no Instragram o motivo da indignação generalizada: “Tudo bem ser dona de casa. Tudo bem não ser. Lugar de mulher é onde ela quiser. E se ser “bela, recatada e ‘do lar’” é uma posição de maior valor social em pleno 2016, realmente estamos rebobinando a fita K7 do Brasil.” Num artigo de opinião publicado na revista Carta Capital, a investigadora em Filosofia Política e feminista Djamila Ribeiro foi ainda mais incisiva na crítica à matéria da Veja. “A intenção é enaltecer Marcela Temer como a mulher que todas deveriam ser, à sombra, nunca à frente”, condenou.
Pela pena da jornalista Juliana Linhares, que assina a peça, Marcela Temer, prestes a completar 33 anos e com 43 anos de diferença para o “’vice’ brasileiro”, é apelidada de “mulher de sorte”. Isto porque, explica o artigo, “Michel Terner, seu marido há treze, continua a lhe dar provas de que a paixão não arrefeceu com o tempo nem com a convulsão política que vive o país”. Bacharel em Direito, sem nunca ter exercido a profissão e com um curriculum vitae que inclui “um curto período de trabalho como recepcionista e dois concursos de miss no interior de São Paulo”, “Marcela é uma vice-primeira-dama do lar”, anuncia a revista. “Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho [o filho de ambos] da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele.”
A notícia termina dizendo que Marcela é o braço digital do marido, o que significa que tem acompanhado toda esta polémica.
Acredite-se ou não na existência de uma intenção subliminar na publicação desta peça por parte da Veja, uma revista tradicionalmente conotada como tendo afinidade ideológica com a direita conservadora brasileira, é inquestionável que o perfil que traça da possível futura primeira-dama é, no mínimo, o de uma mulher em segundo plano. “Em todos esses anos de atuação política do marido, ela apareceu em público pouquíssimas vezes”, adianta o artigo, que nunca chega a citar a própria protagonista, recolhendo apenas o testemunho de pessoas que lhe estão supostamente próximas. “Marcela sempre chamou a atenção pela beleza, mas sempre foi recatada’, diz a sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. ‘Ela gosta de vestidos até aos joelhos e cores claras’, conta a estilista Martha Medeiros”, lê-se ainda.
Concluindo que “Michel Temer é um homem de sorte” – por ter ao seu lado uma mulher como aquela com quem casou, deduz-se –, a notícia termina dizendo que “Marcela é o braço digital do vice”. “Está constantemente de olho nas redes sociais e mantém o marido informado sobre a temperatura do ambiente”, acrescenta. O que nos leva inevitavelmente à última pergunta: estando certamente a par do polémico perfil e de tudo o que à margem dele se disse sobre si nas redes sociais, será que Marcela Temer se revê no retrato reproduzido pela Veja ou, por outro lado, também o considera bolorento, sexista e misógino?