Helena Roque Gameiro:
entre dois artistas

A par do seu trabalho regular como professora da Escola de Arte Aplicada António Arroio, a segunda filha do pintor Alfredo Roque Gameiro continuou a expor depois do casamento com o cineasta Leitão de Barros. Retrato intimista de uma artista de excepção, feito pela neta, Joana Leitão de Barros

José deixa à mãe um bilhete apressado, escrito a lápis e em papel de burro, num dos primeiros dias de Julho de 1920 : “Mamã, (..) o Roque Gameiro gostava que a Helena fosse para o Brasil com uma situação mais definida, a fim de que ele lá pudesse falar de mim. É pois necessário que a mamã se mobilize para lá, e diga à D. Assunção, com toda a simplicidade, duas palavras. (…) Eu logo lhe ensino o recado”. E assim será, com o noivado oficializado pelas duas progenitoras, Helena parte para o Brasil, onde irá mostrar as suas aguarelas, no Rio de Janeiro e em S. Paulo, ao lado do pai. Tem 25 anos e é já 1.ª medalha em Aguarela pela Sociedade Nacional de Belas Artes, numa altura em que as raparigas podem entrar em Belas Artes mas não o fazem, parecendo mais conveniente sabê-las no resguardo de um atelier.

A segunda filha do reconhecido pintor e ilustrador Alfredo Roque Gameiro, com papel de relevo na iconografia republicana, começou a dar aulas de desenho e pintura aos 14 anos, na escola/atelier do pai da rua D. Pedro V, de grandes janelas sobre a cidade, onde as meninas de boas famílias aperfeiçoavam o desenho à vista.

José e Helena conheceram-se no ringue de patinagem dos Recreios Desportivos, na Amadora.

Por alguma razão este pedaço de papel de burro terá sido cuidadosamente guardado. Imagino que a avó Júlia o tenha visto como o princípio de uma parte da história de Helena e o tenha entregue à nora, em momento que só as duas conhecem. A neta vasculhadora que encontrei em mim vê nele um irónico sinal, riscado e escrito a lápis, que marca a continuidade entre Helena, a pintora filha do grande aguarelista que passou ao lado dos ventos do modernismo, para Helena Roque Gameiro, como nunca deixou de assinar, a mulher do cineasta, jornalista e autor José Leitão de Barros. Um bilhete que é também um prenúncio da intensidade e da fúria de fazer do noivo, que irá ditar o ritmo dos dias de Helena.

José e Helena conheceram-se no ringue de patinagem dos Recreios Desportivos, na Amadora, perto do lugar onde a família alargada Marques Leitão /Leitão de Barros se refugiou uma temporada, com receio que os ânimos republicanos atingissem o tio Carlos Adolfo Marques Leitão, professor de matemática do Príncipes D. Luís Filipe e Dom Manuel. Por seu lado, a família de Alfredo Roque Gameiro vivia próximo, em zona rural e ventosa conhecida como “Venteira”, na antiga Porcalhota (hoje Amadora), numa casa construída em 1898 e ampliada sob a direcção do amigo Raúl Lino, e que contou com a cumplicidade de Rafael Bordalo Pinheiro.

A Casa da Venteira

A Casa Roque Gameiro, propriedade da Câmara da Amadora, apresenta em Junho uma exposição dedicada a Rafael Bordalo Pinheiro, autor dos muitos dos azulejos da casa. Ampliada por Raul Lino, a traça da casa traduz os ideais nacionalistas e o conceito da “Casa Portuguesa”, reunindo a arquitetura popular de diferentes regiões do país.

Local: Praceta. 1.º de Dezembro, 2, Venteira, Amadora ( Coordenadas GPS : 38º 45’28.5”N /9º 14’32.6”W)

Horário: 3.ª feira a sábado, das 10.00h às 12.30h e das 14.00h às 17.30h. Domingo, das 14.30h às 17.30h. Encerra 2.ª feira e feriados

Entrada Livre

Graças ao namoro, José passou a ser visita frequente da casa da Venteira e aproxima-se de alguns dos amigos da família, como Júlio Dantas, Afonso Lopes Vieira, Carlos Malheiro Dias, Gustavo Matos Sequeira e Raul Lino. Nessa mesma altura, e nas Belas Artes, onde José frequentava Arquitectura, reuniam-se amadores e artistas em começo de carreira, ansiosos e entusiasmados com as novas tendência – como Tertuliano Marques, Cristino da Silva, Cottinelli Telmo, Diogo de Macedo, Jorge Barradas, Abel Manta, Francisco Franco, Eduardo Viena, Carlos Botelho, Alfredo Morais e Stuart de Carvalhais – e que olhavam com irreverência as figuras dos consagrados, como Columbano, Salgado, Carlos Reis e Roque Gameiro.

O Arlanza, paquete da Mala Real Inglesa, levou pai e filha até ao Brasil, transportando também os quadros que iriam ser mostrados

José relembra a sua relação com Columbano, décadas depois de se ter declarado “um pintor falecido”, nas crónicas “Corvos”, que publicava ao Domingo no Diário de Notícias: (..) Longas horas passei a ouvi-lo, muitas vezes fui com ele e sua mulher ao cinema, e quando um dia o Brás Burity – então o chefão da crítica – escreveu que eu me “columbanizava” em certa natureza morta, Columbano fez-me parar a uma porta de aula, para me dizer em surdina: “Nunca me imite. Eles quando querem rebaixar alguém, dizem logo que se parece comigo…”

Nesse tempo em que José ainda pintava, o Arlanza, paquete da Mala Real Inglesa levava pai e filha até ao Brasil, transportando igualmente os quadros que iriam ser mostrados. A viagem foi penosa para Helena, que enjoa e emagrece, e pouco consegue desenhar, e também para os vidros, que chegam partidos.

A exposição dos aguarelistas portugueses, feita no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, é inaugurada em Agosto de 1920 pelo Presidente Epitácio Pessoa com um êxito singular, segundo a imprensa carioca da altura. A investigação de Arthur Valle, Camila Dazzi e Isabel Portella, publicada em 2014, considera a mostra dos Roque Gameiro como um dos momentos altos do “renovado interesse no Brasil pós-colonial pelas artes de Portugal”. Nessa mesma altura, a Pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro faz-lhes então duas aquisições: “Praia de Adraga” , de Alfredo, e “Assembleia, flores” , de Helena.

Em carta de 16 de Agosto, Alfredo Roque Gameiro confidencia à mulher, Assunção, como é seu hábito, partilhando com ela o que lhe merece reflexão: “ Hoje ía ser sondado o Presidente da República, no sentido de ver se ele condescendia em ir à inauguração da nossa exposição, a colónia vê neste caso um facto de alta importância política (…) para compreenderes bem a sua importância basta saberes que o atual Presidente passa por ser o maior inimigo dos portugueses, agora mesmo está pendente um caso gravíssimo que já aí foi levantado no parlamento, 4000 pescadores portugueses, na sua maioria poveiros, são obrigados a naturalizarem-se brasileiros ou a …serem expulsos, repatriados.(…)”

 É Helena quem compra a casa da Rua do Arco a São Mamede, em grande parte com o dinheiro das vendas no Brasil.

Os lucros e projectos esboçados no Brasil cedo se esvaneceram, graças tanto à desvalorização da moeda como à agitação social e política, que iria levar à queda da República, em 1926. Em Setembro de 1922 escrevia Alfredo Roque Gameiro a Carlos Malheiro Dias, que diligentemente os acompanhou durante a estadia : “greves e mais greves, tudo em geral caminha mal (..) sinto uma profunda tristeza pela sorte que me tem perseguido, como tivesse transferido para escudos o dinheiro que aí pude juntar, decerto em breve nada restará daquela pequena fortuna que tinha conseguido (..) a vida aumenta tão desmesuradamente que só presenciando (…). Ainda assim, é Helena quem compra a casa da Rua do Arco a São Mamede, para onde irá morar o casal, em grande parte com o dinheiro das vendas no Brasil.

Pouco antes do casamento, em 1923, os dois expõem lado a lado, em Madrid. A representação portuguesa de “Aguarelistas Portugueses” integrou, entre outros, Alfredo Roque Gameiro, Columbano, Helena, José e Jaime Martins Barata, que casaria com Mámia, a filha mais nova de Alfredo Roque Gameiro, três anos depois. É no decurso da exposição que a Rainha Vitória Eugénia de Espanha compra a Helena um dos seus trabalhos.

Família Oficina

Na “Escola da Venteira” os cinco filhos de Alfredo Roque Gameiro muito cedo foram iniciados na pintura, independentemente de serem raparigas ou rapazes. Os melhores desenhos eram recompensados com alguns reais, de forma regular. As raparigas, como os irmãos, habituaram-se a gerir o seu dinheiro.

A imprensa da época referia-se à “família oficina” de Roque Gameiro, um clã unido em torno de uma arte fora de moda.

A imprensa da época referia-se à “família oficina” de Roque Gameiro e ela era isso mesmo, um clã unido à volta de uma arte fora de moda, com um chefe de família singular e bondoso, que raiava a desconfiança quando lhe prometiam o mundo, como aconteceu com o marchand que insistia em levar os seus trabalhos para Londres, e que não conseguiu dele mais do que uma resposta adiada.

Laico e de fortes convicções republicanas, a personalidade de Alfredo granjeou o respeito dos seus contemporâneos, e enquanto os modernistas ridicularizavam a anterior escola, Alfredo não era directamente visado. A forma como fala dele o artista plástico José Amaro Júnior pode sinalizar a forma como foi visto pela nova geração modernista, em ruptura com o passado que ele representava: “ Mestre Roque Gameiro era um homem encantadoramente simpático, austero e digno, de andar apressado, vestido sempre de surrobeco castanho, laçarote de seda verde, que conhecia Lisboa de lés a lés e tinha nos becos, nos largos e nos terreiros, como admiradores extasiados, os garotos da rua, que se empoleiravam curiosos em volta do seu cavalete”.

Alfredo construiu sólidas relações de amizade, pontualmente assentes em afinidades pouco óbvias. Entre os amigos mais próximos de Alfredo estavam o diplomata argentino Júlio Monzó, Raul Lino, o seu velho mestre Manuel Macedo, o industrial Alfredo da Silva, Teixeira Lopes, o Padre Araújo Lima, Afonso Lopes Vieira, Baptista Coelho, Delfim Guimarães, os pintores José Malhoa e António Carneiro, e os jornalistas Lourenço Caiola e Bento Carqueja. Para a vida seria também o entendimento com o monárquico Carlos Adolfo Marques Leitão, tio materno do genro José.

Quando morreu, em 1935, não houve discursos nem cerimónia religiosa, seguindo indicações suas, apesar das muitas entidades presentes. De igual forma, não mostrou vontade de ser enterrado em Minde, onde nascera.

No pátio conventual

A entrada de Helena na família Leitão de Barros não a privou da entourage artística, muito pelo contrário, acrescentou-lhe bastante efervescência. Algumas das amizades dos irmãos Leitão de Barros, como Cottinelli Telmo, o arquitecto que viria a casar com a irmã mais nova de José, a escritora Fernanda de Castro, vizinha na Travessa de Santa Quitéria, (que viria a casar com António Ferro, director do Secretariado da Propaganda Nacional de Salazar), Almada Negreiros, Guilherme Santa Rita, Fernando Pessoa e Branca Colaço, faziam parte de um núcleo muito próximo, que se multiplicava em projectos artísticos que os foi juntando, ao longo da vida, em revistas, jornais, teatro e cinema. A doçura de Helena, em contraponto à vibração em tom alto dos Leitão de Barros, cedo conquistou Teresa e Luísa, irmãs de José, e todo o restante clã.

Leitão de Barros confiava a pesquisa e o desenvolvimento do guarda-roupa e dos adereços a Helena.

Ao longo das décadas, a inúmera correspondência de José para Helena confirma a forma como estava envolvida na sua imensa actividade. Em muitos dos filmes, festas e cortejos organizados pelo marido é lhe confiada a pesquisa e o desenvolvimento do guarda-roupa e dos adereços. Helena acompanha o trabalho do marido, passo a passo.

Nos anos 30 e 40 viajou várias vezes para Paris, onde tudo se passava, para Londres, Berlim, Viena, Madrid e Rio de Janeiro, algumas das vezes com os filhos. Tirou a carta de condução, educou os filhos com proximidade, e durante uma temporada dirigiu a revista Eva, responsabilidade partilhada com a irmã Mámia.

A par do seu trabalho regular como professora da Escola de Arte Aplicada António Arroio, iniciada em 1919 como professora das Oficinas de Lavores Femininos, Helena continuou a expor depois do casamento, como a irmã Raquel, se bem que com largos intervalos de tempo. Em Fevereiro de 1933 esteve no Salão Silva Pôrto, ao lado de Raquel e do pai. Em 1947 mostra os seus trabalhos no estúdio do SNI e, três anos mais tarde, volta ao Porto, em exposição individual. Escrevia José, por essa altura “a par dum primitivismo de ideias e de preconceitos, a rapariga portuguesa está isolada dum conjunto de funções e de actividades (..), a nossa rapariga só dotada de excepcionais qualidades de vontade, persistência e talento, conseguirá vencer a indiferença hostil, o espanto boçal, a desconfiança dos homens, a crítica das outras mulheres, o medo ao ridículo e a má língua do pátio conventual que é a nossa província e a nossa cidade(..).

A exposição “Aguarelas de Outro Tempo foi inaugurada por Américo Thomaz, no espaço onde o pai e o marido trabalharam e expuseram.

No final dos anos cinquenta, José atravessa um período de doença, que o leva a um demorado internamento num hospital de Londres, no qual é acompanhado pelo filho, médico. Helena fica em Lisboa, e as cartas mostram a forma inteligente como conduziu os assuntos em curso.

Cinco anos depois de José morrer, o jornal O Século dá conta de uma nova exposição de Helena, inaugurada pelo Chefe de Estado, Américo Thomaz, intitulada de “Aguarelas de Outro Tempo”, no espaço onde o pai e o marido trabalharam e expuseram. Dois dias depois da abertura, segundo narra o República de 16 de Maio,“estavam as obras quase todas adquiridas”.

Os longos despachos matinais

Neste “outro tempo”, existiu uma terceira e ainda silenciosa Helena, que resgatou parte da melancolia das outras. A Helena dos netos, a minha avó, do almoço de Domingo e dos talheres Christofle que pesavam, das conversas em francês para que não dessemos conta das disputas familiares. A avó Rainha, a quem nunca ouvi levantar a voz, que despachava de manhã, à frente do tabuleiro do pequeno-almoço, tomando decisões e hesitando muito pouco, quer se tratasse de jardinagem, gestão familiar ou ementa do dia, temida pelas criadas mas a primeira para quem corriam, nas dificuldades.

Helena aguarelou até ao fim dos seus dias. Trazia o cavalete para o jardim, de encontro à melhor luz.

Helena pintora que não impunha a pintura aos netos, que pouco contava sobre o que já não existia, capaz de se emocionar por uma árvore derrubada.

A avó que era nossa, com quem vivíamos os três meses de férias de verão, que nos olhava como se transportássemos todas as virtudes do mundo, uma avó, é esse o nome.

Helena aguarelou até ao fim dos seus dias. De vestido, em tons escuros ou beiges, cabelo arranjado e verniz rosa pálido, trazia o cavalete para o jardim, sem alarido e à hora certa, de encontro à melhor luz. Helena gostava de dálias, hortênsias, petúnias, e de fruta perfeita.

Parte das suas sombras e silêncios estão nas nuvens e naturezas mortas de certas aguarelas, carregadas de cinzento e de traço difuso, como em nenhum outro discípulo de Roque Gameiro.

Da sua última exposição, feita em 1972 no atelier da rua D. Pedro V, fica o retrato: Helena elegantíssima, sozinha e frente à sua pintura, saída da sombra pela sua arte, perante Américo Thomaz e o mundo, com as várias cabeças dos netos, omnipresentes e bem visíveis, a estragarem o enquadramento da foto.

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